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Os anjos do Círio de Belém do Pará

Não sou cristão embora a minha formação seja cristã. Como bom brasileiro, sincrético, tenho num pé na igreja e outro no terreiro. Tanto vou a um quanto ao outro. E neles medito. Mas também medito fora deles.
Nestes momentos de (auto)reflexão, ali, na solidão de minha inquietude, refaço-me. E agradeço ao conhecimento que me tem sido revelado e mais a este que eu tenho conquistado depois de tê-lo buscá-lo.
Agradeço às luzes e às trevas. Porque a sabedoria é como Deus, está em todos os lugares, em todas as coisas e pessoas, pelo que não nos cabe recusar as coisas que são, mas questioná-las, e refletir sobre estas, se possível, muda-las, depois que reconhecermos em nós transformação que se tornou necessária para lutarmos pela mudança das coisas.
Do outro lado do oceano - há milhas dos tradicionais pratos paraenses, aos quais não como por não comer carne -, escrevo este texto a título de apresentação de um pequeno registro videográfico.
Até porque filmar faz parte de minha cultura, assim como ver a Santa passar. Faço-o por eu próprio, mas, também, por toda a humanidade.
Posso ser capaz de pensar sobre isso mas muitas vezes confesso que faço sem saber ao certo porque estou a fazê-lo.
É da minha cultura, acreditar em Deus.
É da minha cultura, acreditar no amor.
É da minha cultura, comprar um par de asas.
E uma manta branca para vestir meu filho de anjo e agradecer à mãe de Jesus o nascimento do sol e o nascimento da lua.
Agradecer pelo meu menino-anjo e por todos os anjos-meninos e meninas, pelos meus outros dois filhos, Gabriel e Luan.
E por todos os outros pequenos, excluídos, os quais, ao meu modo, e mesmo a uma distância que beira a indiferença, eu também os amo.
Cultura é isso ou mais ou menos isso, Cultura.
Só os anônimos a fazem. Só os anônimos a constroem.
Da forma mais natural, quase que inconscientemente. Do pai e da mãe ao filho e assim ad infinitum.
E assim tudo se processa, com a experiência e mesmo sem esta.
Com a reflexão crítica – permanente, e sempre no estado filosofal da vigília.
E também de forma aleatória, caótica, imersa na sua própria complexidade, na sua dinâmica e neste vendaval de fenômenos que ocorrem para além de nossa capacidade de abstração e absorção.
Cultura é fé.
Primeiro fé na vida e na força que uma existência trágica pode produzir para o mundo, com a sua poesia e a sua arte.
Mas, fé, também pela sua própria essência.
Fé no mistério (das coisas que não podem jamais vir a ser coisifcadas).
Fé na vivência de uma espiritualidade que se revela em encontros com sentimentos nobres, ainda capazes de trans/formar o mundo.
Fé na hora em que somos apenas uma multidão de gentes que tem fé mesmo sem saber o que isso é.
Fé quando diluídos, anonimamente, em meio a esta massa de coração e mente humana (emocionamos) pelo passar de uma imagem que representa a mãe de um ser humano profético.

© Carpinteiro



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