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Salve-se quem puder a antropofagia da arte nacional brasileira



Eu defendo a arte nacional ainda que este conceito seja falso como o é o conceito de identidade nacional, e mesmo que estas ideias traduzam sentimentos de um povo preso a estes mitos.

Arte nacional tem por princípio ideológico unificar uma Nação a formas pelas quais esta ideia de arte a apresenta ao mundo.
Mas, esta arte pressupõe o resgate de heróis nacionais e dos mitos do passado.
Ora, nossos mitos originários são de origem indígena, tendo alguns deles sobrevivido, e modificados pelas traduções que a cultura branca e cristã lhes impôs.
Daí a narrativa oral ser o pilar que manteve os fundamentos de algumas culturas tradicionais, negras e indígenas.
Esta arte histórica, de sabedoria indígena, e de tradição africana, míticas e reais, constitui a verdadeira arte nacional, que jamais poderia ser nacional, porque ela revela o conhecimento de povos historicamente explorados.
Na Amazônia das contradições, desenvolveu-se o sacrifício, e a exploração da força de trabalho desses povos, índios e negros, que aqui residiam, ou que para cá vieram, arrastados à força. 
Mas, a imponência dos valores originários da Europa petrificou-se através de palácios e igrejas, idéias e pensamentos, que se sobrepuseram a uma arte ligada a terra e a história da Amazônia e do Brasil. 
Os valores amazônicos, entretanto, são seculares e pertencem a outro tempo, mítico, e não à cronologia histórica do homem branco. 
A arte amazônica é a taba, a oca, e não o neoclassicismo e/ou o barroquismo.
O patrimônio histórico de um país é a sua luta social, a sua consciência política, e as suas formas populares de resistência, contra todas as formas de dominação. 
Eu defendo a arte nacional, como defendo a arte amazônica, a arte paraense, e a arte bragantina, porque elas têm nuances, que não se podem hibridizar sob pena de desaparecer.
E defendo as artes locais que se diferenciam nos próprios espaços em que elas acontecem, como fenômenos, efêmeros, mas potentes, muito além do momento em que ocorrem, sobrevivem, nas memórias de sentimentos coletivos que as mantém vivas, em manifestações artísticas, abertas e públicas.
A arte não tem pátria, mas tem patrão, que nem é quem a cria, mas o mercado ao qual estão dirigidas as maiorias dos objetos artísticos, porque afinal de contas um artista ainda que nos livre da realidade com o bom resultado do trabalho, ele também tem de sobreviver e pagar os boletos.
A arte não tem pátria, mas se tem indústria, ela tem ideologia de mercado, e é protegida pelo Estado. 
Mas, os fenômenos culturais não sucedem por decreto ou por vontade de indivíduos. 
Eles resultam de lutas históricas e se processam de forma dialética, dinâmica, no interior das sociedades, no imaginário, nas práxis e nas relações entre nações, grupos e indivíduos.
E a História não se constrói a partir de narrativas, e sim de interpretações, vivências, ações concretas, reais, subjetivas, aleatórias.
O povo que defenda a arte popular. E o artista verdadeiro que faça a sua própria resistência. Só a antropofagia nos salva!

© Carpinteiro

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